uma crítica ao livro “Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério” de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.
𝒑𝒐𝒓 Sandra Souza, psicóloga clínica e organizacional, psicopedagoga e analista junguiana em formação pelo IJUSP. Artigo publicado no Observatório de Psicologia Analítica, um dispositivo da AJB Associação Junguiana do Brasil.
“Uma vez que todos acreditam ou, ao menos, procuram acreditar na superioridade inequívoca da consciência racional, devo acentuar a importância das forças irracionais inconscientes para conseguir uma espécie de equilíbrio. Por isso, parece ao leitor superficial de meus escritos que atribuo importância exagerada ao inconsciente em detrimento da consciência” – C. G. JUNG OC 18/2 par. 1585)
Num tempo que combina aceleração e insegurança, talvez nada pode ser mais entorpecente ao pensamento reflexivo que a oferta de certeza, por um outro qualquer que se assuma portador de uma inquestionável verdade.
Quando as fantasias são povoadas pelo medo, talvez nada seja tão sedutor quanto a unilateralidade oferecida por um pensamento concreto e materialista, que procura nos livrar deste sentimento humano, tão protetivo quanto incômodo.
E é isto que parece nos oferecer Natália Pasternak em seu novo livro: entorpecimento e unilateralidade, que certamente venderá uns bons exemplares, e receberá vários defensores, em especial, no grupo dos adeptos ao cientificismo reducionista.
No que diz respeito à psicologia, desqualifica a Psicanálise, Freud e aqueles a quem chama de “seus discípulos-hereges”, incluindo neste grupo, Jung. É simplória e superficial ao falar da transferência psicanálitica, buscando definí-la em pouco mais de 20 palavras e explicá-la em dois parágrafos! Por fim, zomba do inconsciente, e o aborda apenas a partir da perspectiva dos conteúdos reprimidos, ou utilizando o que pensa que sabe sobre o inconsciente para explicar outros temas que não são de sua especialidade profissional ou de pesquisa.
O interessante é que, “Que bobagem!” parece anunciar a qualidade de seu conteúdo com o próprio título, pois, à primeira vista, parece recheado de bobagens que não valem o tempo de leitura, exceto para se criar argumentos consistentes que o desbanquem, pelos que são especialistas em cada tema e, portanto, aptos a fazê-lo.
De forma geral, o livro parece prestar um desserviço, pois, no que tange à Psicologia, é cheio de equívocos, e o faz de forma desrespeitosa e arrogante. Oferece munição velha para uma briga antiga entre as ciências humanas e exatas. Coloca numa mesma rota de tiro vários temas diferentes e contra eles organiza argumentos que ao final chegam à mesma conclusão: isto não é ciência!
Jung, que desta vez escapou do holofote, e trabalhou com Freud nos primórdios da Psicanálise, nos diz que “o intelecto é uma função que depende da psique individual e é determinado por condições subjetivas, para não mencionarmos as influências do meio ambiente” OC 11/5, par. 766.
Fico a pensar como qualificar a psique na qual a função intelectual se ancorou para a produção deste livro.
Utilizando de sua recém adquirida fama, fruto de um ambiente dominado pelo fanatismo de pessoas que defendiam, entre outras coisas, que a terra era plana, Pasternak, surfou na onda de uma ciência reducionista, aplicável e necessária num período pandêmico, adequada a alguns campos do saber, mas não a todos.
Apoiada pela grande mídia, ela e outros profissionais, nos ajudaram a lidar com estatísticas, dados, fatos e vírus, e ocuparam um lugar na sociedade brasileira, que de forma assustadora foi abandonado e negligenciado pelo Estado.
A obra, talvez de forma premeditada, não qualifica, categoriza ou distingue em profundidade campos tão diversos entre si quanto: Astrologia, Homeopatia, Acupuntura, Psicanálise, Paranormalidade, Disco Voadores e Antroposofia.
Em 336 páginas, talvez pretensamente, ousa dizer a que se referem tais temas, seus principais conceitos ou argumentos, e a rebatê-los, finalizando, como já sabemos, com a esperada conclusão: isto não é ciência ou não é científico.
Edgar Morin nos diz que “os ramos mais fecundos em descobertas sobre a organização viva, a biologia molecular e a genética ocultaram a própria ideia de vida, que se tornou invisível para aqueles que vem apenas moléculas, genes, programas, mutações do acaso, seleção natural, que permitem escamotear a criatividade, com medo da ilusão creacionista. A vida foi banalizada e trivializada.” (Morin, Edgar; 2020, pg. 64)
Então, do medo da ilusão creacionista ou terraplanista, surgiu esta bobagem que reduz ciência ao cientificismo reducionista.
Ao criticar vários campos alheios à sua especialidade, talvez a autora faça exatamente o que procura criticar. Na prepotência de querer negar tudo que não conhece, afasta-se do comportamento científico e aproxima-se do senso comum: banaliza e trivializa a ciência e o fazer científico.
Até bem pouco tempo, não se havia compreendido cientificamente como as abelhas, espécie ameaçadas de extinção, voavam. Mas, alguns cientistas, convencidos de que as abelhas realmente existiam e voavam apesar de seus cálculos, seguiram investigando e descobriram que uma das razões que favorece o voo diz respeito ao fato de que as asas do inseto são diferentes do que os cientistas imaginavam, e que portanto os cálculos utilizados não reproduziam o movimento gerado pelo corpo da abelha.
Ao desvendar o mistério do voo das abelhas, estavam presentes o cálculo e a consciência de uma capacidade imaginativa que, em algum ponto, apontava para uma realidade incompatível com o fenômeno do voo da abelha.
Mas, como se aproximar do conceito de inconsciente, se a amplitude da imaginação da autora parece caber na área delimitada por uma lâmina de microscópio? Se é que ela reconhece a imaginação como uma função psíquica que, aliás, está fortemente ligada ao fazer científico.
Talvez a única, mas muito relevante contribuição do livro, seja nos estimular, Analistas e Psicanalistas, a transitar com mais frequência e intensidade no campo do fazer científico, produzindo e publicando, para que possamos rebater argumentos de perspectiva unilateral que tentam, desde os primórdios dos estudos do inconsciente, desmenti-lo como realidade.
No momento que convivemos, cercados de discussões relevantes e complexas girando em torno da inteligência artificial, que apontam para questões que nos levam a refletir sobre o que é humano, ou ainda, para nossa real capacidade e possibilidade de destruição da espécie e do planeta, fazer apologia ao cientificismo reducionista e zombar do inconsciente é quase como viver em outro planeta ou isolada em uma nave espacial.
REFERÊNCIAS:
Jung, C. G. (2019). Psicologia e Religião Oriental. Obras Completas de C. G. Jung, Volume 11/5 Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2019). A vida Simbólica.Obras Completas de C. G. Jung, Volume 18/2 Ptrópolis: Vozes.
Morin, Edgar (2020). Conhecimento, Ignorância e Mistério. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Pasternak, Natália; Orsi, Carlos (2023). Que bobagem! Pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério. São Paulo: Contexto.
Cientistas britânicos revelam o segredo do voo das abelhas – https://g1.globo.com/…/0,,MUL3965-5603,00-BRITANICOS…