Texto produzido como enfrentamento ao posicionamento do casal de escritores Pasternk e Orsi, e em defesa das abordagens psicodinâmicas como Psicanálise e Psicologia Analítica em Roda de Conversa promovida pela OCA Junguiana e o Instituto do Imaginário.
Desde o lançamento do novo livro pelo casal Pasternak e Orsi, muitos foram os desdobramentos na grande mídia e nas redes sociais, assim como várias também foram as respostas dos autores a tais repercussões.
Apesar de ser motivada por este evento, minha fala não irá se restringir aos argumentos específicos do livro, ou à defesa da Psicanálise e das abordagens psicodinâmicas, onde se enquadra também a Psicologia Analítica, como Ciência.
Não deveria haver dúvidas, no ano 23 do século XXI, de que ao se referir à produção de conhecimento, já não falamos mais de ciência com C maiúsculo, no sentido hegemônico, mas de ciências e de saberes.
Aqui não falo como cientista ou somente a partir de um olhar científico, parafraseando Gambini falo como terapeuta que eventualmente cria pensamento.
Como terapeuta interessa-me a liberdade da alma, que se expressa entre outras coisas na liberdade do pensar, do fazer pensamento, do criar e transmitir saberes científicos ou tradicionais, contra qualquer jaula que os queiram aprisionar.
Sabemos que o aprisionamento da alma adoece. Se transforma em sintoma, é circunscrito em um diagnóstico ao qual podem ser oferecidos medicamentos, ou a possibilidade de liberdade por meio de várias formas de expressão.
Pretendo, portanto, olhar para o lançamento deste livro e suas repercussões como um fenômeno e inserindo-o numa moldura maior que a lâmina de um microscópio, imaginar um sentido para a audiência e para o incômodo gerados por tanta bobagem.
Será mesmo bobagem?
Ciência e Estratégia, nas asas de Hermes: o sucesso do livro
Ao que parece, na definição da estratégia para o lançamento do livro, a dupla, foi inteligente, e precisa, utilizou foco e método. Sendo ele jornalista, a utilização dos mecanismos de comunicação pareceu-me bastante eficaz. A escolha do título chamativo, fortalecida pelas manchetes emocionais dos principais jornais, lançadas num contexto sócio-histórico carente de certezas, temeroso pelo retrocesso ao obscurantismo, e abalado pela experiência de uma pandemia, fez com que Pasternak se mantivesse em relevância mesmo após a perda dos holofotes pandêmicos.
Neste Brasil sobrevivente, muitas pessoas têm buscado se reorganizar após suas perdas, e para enfrentar fragilidades psíquicas e emocionais decorrentes de um período de dor, luto e sofrimento, recorrem a várias formas de reduzir, lidar ou compreender tal desorganização que ainda as envolve, concreta ou simbolicamente, de alguma maneira.
Então, mirando este público de brasileiros assustados e feridos, ou neste nicho de mercado, a partir de um lugar distante, e com olhos de águia, o casal Pasternak e Orsi lançou seu livro, e parece que estratégica e mercadologicamente se saíram bem.
Dado o eco que tal lançamento gerou, seria possível imaginar que as afirmações apresentadas no livro, e a maneira como são expressas, podem se conectar tal qual um imã a algum traço cultural, do qual passariam a ser, de forma inconsciente ou talvez desavisada, seus representantes e divulgadores?
Afinal, citando Jung é importante lembrarmos que “A inteligência se ocupa principalmente em inventar “ismos” adequados para ocultar seus verdadeiros motivos ou para conquistar o maior número possível de presas” (C.G.JUNG; O.C. 11/5, § 772)
A miragem que nos prende, escondendo os caminhos já trilhados
Um recente levantamento realizado pela Agência Bori e pela editora de publicações científicas Elsevier, divulgado em matéria recente na folha de São Paulo, aponta para uma redução de 7,4% na publicação de artigos científicos em 2022 em comparação ao ano anterior. “O índice é o pior entre 51 países e é igual ao da Ucrânia, que esteve em guerra pela maior parte de 2022”.
Os dados são preocupantes à medida que mostram apenas os primeiros reflexos da falta de investimento em pesquisa e em educação nos últimos anos, podendo haver ainda uma tendência de queda a se verificar futuramente.
Sem produções acadêmicas que, surgindo de nossa realidade, busquem soluções e respostas para os nossos problemas reais, de onde virão as respostas e soluções, e baseadas em quais questões e visão de mundo?
Mas gostaria de aprofundar-me um pouco mais nesta problematização.
Para isto empresto de Boaventura Souza Santos, a ideia das Epistemologias do Sul, definida como “o conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos”. (Souza Santos, Boaventura; 2010).
Tal diálogo, denominado Ecologia dos Saberes, visa combater os resquícios do colonialismo, que se mostra, entre outras, na forma das injustiças sociais entranhadas na cultura dos países de passado colonial como o Brasil, já que segundo o autor “O fim do colonialismo político, enquanto forma de dominação, não significou o fim das relações sociais extremamente desiguais que ele tinha gerado. O colonialismo continuou sob a forma de colonialidade de poder e de saber (Souza Santos, Boaventura; 2010).
Sabemos que a liberdade e a vocação da Psicologia Analítica para o desenvolvimento de um pensamento complexo, que estimula a construção do saber psicológico pelo intercâmbio com outros saberes, científicos ou tradicionais, tem gerado, aqui no Brasil, aproximações interessantes com a sabedoria tradicional dos povos originários e de matriz africana, podendo ser considerada, portanto, uma abordagem facilitadora para uma descolonização do pensar, e porque não dizer uma descolonização da alma brasileira.
Sendo assim, ao nos depararmos com os posicionamentos dos autores que não apenas restringem e enquadram de forma ultrapassada, o que se entende atualmente como ciência, mas também desqualificam outras formas de saber não classificadas como científicas, temos os nossos campos de estudo, pesquisa e prática tolhidos e reduzidos por uma atitude hegemônica e colonialista, e não podemos aceitar tal retrocesso!
Produções acadêmicas em Psicologia Analítica precisam de instituições que acolham seus objetos de estudos e os métodos de pesquisas mais adequados as estes, com verbas suficientes para que os trabalhos dos pesquisadores sejam levados a cabo nos parâmetros de qualidades necessários para se tornarem relevantes, tendo como um de seus resultados a aproximação com a prática clínica e com as diversas e complexas questões por nós enfrentadas como terapeutas Brasileiros.
Negar às abordagens Psicodinâmicas, e em especial à Psicologia Analítica, o status de ciência, pode ser muitas coisas, entre elas uma atitude política e não simplesmente científica, nem tampouco uma atitude apenas relacionada à uma questão de utilidade pública, já que os espaços acadêmicos são também espaços políticos, dos quais derivam muitas vezes ações e diretrizes que influenciam instâncias de poder ligadas à esfera pública e à iniciativa privada.
Portanto, talvez um lado ainda pouco iluminado deste debate, não trate, da disputa ultrapassada que se deu no século XIX, quando a psicologia buscando se afirmar como ciência, se esquivava ou se escondia das intersecções possíveis de seu poroso território, com as fronteiras da filosofia, das ciências naturais e da religião, já que “Estas tensões entre a ciência, a filosofia e a teologia têm sido altamente visíveis” desde muito tempo. (Souza Santos, Boaventura; 2010).
Parece-me que a inclinação dos autores, apresentam um risco, por se mostrar alinhada a uma tendência de colonização do saber já que assentam a visibilidade do conhecimento defendido por eles na “invisibilidade de formas de conhecimento que não encaixam em [suas] formas de conhecer. Refiro-me aos conhecimentos populares, leigos, plebeus, camponeses, ou indígenas (…).” (Souza Santos, Boaventura; 2010).
Então, o que o casal parece defender em seu livro é que formas de conhecer que não se enquadram em um pensamento positivista devem desaparecer “como conhecimentos relevantes ou comensuráveis por se encontrarem para além do universo do verdadeiro e do falso.” (Souza Santos, Boaventura; 2010).
Permitir que esta discussão, nos aprisione numa miragem, e nos leve para um estágio há muito ultrapassado, no qual “as ciências naturais em oposição às “humanidades”, [impuseram], uma imagem do mundo que exclui a psique humana e real” (C.G.JUNG; O.C. 10/1, § 498) é nos deixar apanhar pelas artimanhas do espírito do tempo, que nos insere por meio dos algoritmos num redemoinho de obviedades que nos mantém girando como reféns em torno de discursos que não nos fazem avançar pelos caminhos que vem sendo tão bravamente, e por vezes solitariamente, abertos por profissionais que se lançam em busca de conexões e pontes.
Aterrizando, então, em questões que nos são relevantes neste tempo, é importante refletir sobre os danos que declarações pouco cuidadas sob o ponto de vista coletivo, líderes de audiência e hábeis comunicadores causam ao ocupar um espaço de poder sem que sejam na mesma medida do poder que possuem, guiados por uma ética do cuidado, uma ética que envolve não apenas aos iguais em seus braços protetores, mas acolhe também ao Outro, o diferente que se lhe apresenta em complemento ou até em oposição
O perigo da unilateralidade, e a necessidade de uma ética do cuidado.
A cada novo passo da tecnologia, vivemos as emoções de um admirável mundo novo, cheio de possibilidades e riscos, que por um lado atendem, e por outro criam demandas cada vez mais exigentes e complexas de adaptação de nossa vida da terra, que nos colocando de frente com questões amplas, difíceis e fundamentais para nossa existência.
A cada avanço, discussões sobre os limites éticos da ciência se fazem presentes, e aos mais sensíveis e atentos, os questionamentos sobre a necessidade e o propósito, os reais benefícios e beneficiados, de tanto desenvolvimento, se apresenta.
Morin nos diz que “o desenvolvimento tem dois aspectos. Por um lado, é um mito global no qual as sociedades que chegam a se industrializar alcançam o bem-estar, reduzem suas desigualdades extremas e facilitam aos indivíduos o máximo de felicidade que uma sociedade pode dispensar. Por outro lado, uma concepção reducionista, na qual o crescimento econômico é o motor necessário e suficiente de todos os desenvolvimentos sociais, psíquicos e morais. Essa concepção tecnoeconômica ignora os problemas humanos de identidade, da comunidade, da solidariedade, da cultura.” (Morin, Edgar; 2007)
Advogar em prol de um pensamento cientificista e desenraizado, pois desconectado de outras possibilidade de conhecer e representar o mundo, é afastar-se de nossos aspectos irracionais que nos tornam sensíveis às questões básicas e viscerais da vida na terra, que longe de serem menos importantes, são aquelas que nos mostram nossas fragilidades e limites, nos protegendo de nós mesmos, nesta busca desenfreada pela adaptação normativa, pela produtividade e pelo desenvolvimento.
Cito Jung que nos lembra de que “O abalo do nosso mundo e o abalo de nossa consciência são uma e a mesma coisa. Tudo se torna relativo e por conseguinte questionável. E, enquanto a consciência, hesitante e duvidosa, contempla este mundo questionável em que ressoam tratados de paz e amizade, de democracia e ditadura, de capitalismo e bolchevismo, cresce o anseio de seu espírito por uma resposta ao tumulto de dúvidas e inseguranças.” (C.G.JUNG; O.C 10/3 § 177)
Pasternak ganhou influência num período de grande insegurança, sua notoriedade e talento podem ser atestados pelas posições que ocupa em instituições nacionais e internacionais. Em seu perfil no LinkedIn ela se apresenta como divulgadora da ciência. A potência de sua voz alcança muitos seguidores nas redes sociais, e espaços importantes na grande mídia.
Apesar disso, sua mensagem como cientista perde relevância e nos presta um desserviço, pois não nos atende nas grandes questões que, passada a pandemia, continuam nos afligindo enquanto humanidade, pois, o tipo de pensamento que propõe, não facilita a busca por alternativas para enfrentar as complexas e difíceis questões que ameaçam a nossa existência nesta era planetária, ao contrário nos cega para elas.
Byung-chul Han, filósofo coreano contemporâneo nos diz que “o tempo no qual havia o Outro passou. Desaparece o outro como mistério, o outro como sedução, o outro como Eros, o outro como desejo, o outro como inferno, o outro como dor.” (Han, Byung-Chul; 2022)
Mas o lugar do qual falo, é o lugar do terapeuta que às vezes cria pensamento, o lugar a partir do qual a abertura ao Outro é condição, o lugar a partir do qual as possibilidades de haver um Outro são criadas para aqueles que nos procuram com os sofrimentos decorrentes destes tempos narcísicos.
Então, numa atitude Erótica, estamos aqui em roda, buscando dialogar com as ideias que nos trazem este Outro. Um outro que se apresenta com um olhar para o mundo estranho ao nosso, um olhar que simplifica e reduz. É importante que acolhamos este olhar, e o coloquemos num enquadramento adequado, para que possamos simplificar e reduzir aquilo que, devido à sua natureza, assim nos solicita para que possa ser visto.
Acreditamos, assim como Boaventura que “Não existe justiça social global sem justiça cognitiva global. Isto significa que a tarefa crítica que se avizinha não pode ficar limitada à geração de alternativas. Ela requer, de facto, um pensamento alternativo de alternativas. É preciso um novo pensamento (…).” (Souza Santos, Boaventura; 2010)
E para isso, nós Junguianos, precisamos acreditar que a Psicologia Analítica e Complexa, por meio de sua prática, e de suas produções científicas, pode contribuir com sua vocação para dialogar com outros saberes, alargando e criando outras formas de pensar de produzir pensamentos.
REFERÊNCIAS:
Gambini, Roberto (2020). A Voz e o Tempo. Reflexões para Jovens Terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial.
Han, Byung-Chul (2022). A Expulsão do Outro. Sociedade, percepção e comunicação hoje.
Jung, C. G. (2011). Civilização em transição. Obras Completas de C. G. Jung, Volume 10/3 Petrópolis: Vozes.
Jung, C. G. (2019). Psicologia e Religião Oriental. Obras Completas de C. G. Jung, Volume 11/5 Petrópolis: Vozes.
Morin, Edgar (2007). Educar na Era Planetária. São Paulo: Cortez Editora
Souza Santos, Boaventura de (2010). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez Editora
Produção Científica tem queda inédita e nos mesmos níveis da ucrânia em guerra. https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/2023/07/producao-cientifica-no-brasil-tem-queda-inedita-e-no-mesmo-nivel-da-ucrania-em-guerra.shtml